As III Jornadas da Rede de Bibliotecas da Maia tiveram lugar nos dias 18 e 19 de outubro e estiveram subordinadas ao lema Livro o Arbítrio, direito de escolher leituras.
Divulgamos aqui a comunicação proferida pela coordenadora interconcelhia, professora Angelina Pereira, denominada "A cada livro o seu leitor":
Falar de leitura e de leitores é muito complexo. No fundo, é
construir uma narrativa sobre o que, em determinado momento histórico, se
entende, institucional e socialmente, como legítimo em termos de leitura.
Guerra Junqueiro, autor de Contos para a Infância, ao dar
conselhos sobre o que as crianças deviam ler e aprender, escreveu:
“Se a tua filha tem 9 anos, compra-lhe livros instrutivos e
agradáveis: ensina-lhe línguas, geografia e princípios de história natural. De
arte, só a música, e essa pouca e boa. A arte é um excitante poderosíssimo que
transtorna e desequilibra uma organização melindrosa. Não se dá um poema a uma criança pelo
mesmo motivo porque se lhe não dá uma garrafa de vinho ao jantar.” [Prefácio à
2º edição de A Morte de D. João, um ano antes da publicação das suas obras para
a infância]
Eça de Queirós: “Eu pergunto a mim
próprio o que é que em Portugal lêem as pobres crianças. Creio que se lhes dá
Filinto Elísio, Garção ou outro qualquer desses mazorros sensaborões quando os
infelizes mostram inclinação para a leitura.”
A verdade é que quando o livro chega às mãos do leitor, já passou por inúmeros crivos que
são as tais ‘censuras’ que restringem as suas possibilidades de escolha. Por
que se publica este e não aquele livro? A que livros dá o livreiro grande
destaque? Por que a biblioteca adquire este e não aquele livro? Por que razão o
professor sugere este e não aquele título? Por que motivo o pai ou mãe se
pronuncia favorável ou desfavoravelmente sobre determinada obra e aconselha ou
desaconselha a sua leitura?
O editor tem uma política editorial definida. O livreiro não
atento compra por catálogo do editor, em função dos pedidos dos clientes,
pedidos dependentes da oferta e está instalado um ciclo vicioso. Alguns
livreiros restringem as suas ofertas às novidades, aos ‘best-sellers’ e, nesta
perspetiva, nada oferecem de novo, de diferente do quiosque da esquina. A forma
como os livros são dispostos, exibidos, destacados numa livraria também
condiciona, direciona, ‘obriga’, restringe a liberdade escolha. A ‘qualidade’ é aferida pela capa
bonita, vistosa, pelo tipo de papel, pela encadernação, pelo tamanho…
As bibliotecas, cujo principal papel
é o de atrair leitores, também fazem as suas escolhas, selecionando ‘bons’
livros ‘adequados’ às diferents ‘faixas etárias’ (uma divisão baseada nas
idades e que é tão subjetiva quanto sabemos que não há 2 crianças de 4, 6 ou 8
anos com desenvolvimentos afetivos, intelectuais e culturais idênticos, nem o
facto de se ter 13 anos significa que todos os rapazes têm um derminado ‘gosto’
e as raparigas outro diverso…). E tão preocupados estão em orientar os leitores
que chegam a colocar sinalética nesse sentido: ‘Primeiras Leituras’, ‘Iniciação
à Leitura’, ‘Livros Infantis’, Livros para a Infância’, Livros dos 8-10, Livros
dos 10-12, Livros para Adolescentes e por aí fora. Numa bibloteca escolar,
acresce o ‘filtro pedagógico’ que, não raramente, retira da oferta obras que
sugerem estar fora do âmbito pedagógico. Os temas mais fraturantes são evitados
para previnir as críticas dos pares e/ou encarregados de educação…
Que espaço de liberdade resta então ao jovem? Pouca. É a
altura em que se torna naquilo que consensualizámos chamar ‘não leitor’. Não lê
nada. Não vai à biblioteca, ou melhor, não requisita livros. Mas será que não
lê mesmo nada? Ou será que não encontra os livros e os suportes que, agora
(nesta fase do seu desenvolvimento) que lhe suscitam curiosidade? Como se
explica este paradoxo que é de haver uma oferta brutal (como nunca houve em
épocas passadas) de obras para o denominado ‘público juvenil’?
De facto, o que causa entropia neste aparente paradoxo, é uma
concertada opinião do que é cultura, do que são livros ‘bons’ em oposição aos
livros ‘maus, ou de qualidade literária muito duvidosa… A banda desenhada é
boa? Uhmmmm… Talvez o Tintin, o Astérix… Não vale a pena comprar…É leitura sem
conteúdo. Os livros são demasiados caros. Os jovens não gostam, também se ouve.
Revistas?Jornais? Também não se investe nestes suportes ou, pelo menos, não de
forma assumida através de uma oferta variada em temas e em atualidade.
Os ‘clássicos’ são bons porque resistiram ao choque das
gerações mas como podemos nós prever quais são as obras que hoje publicadas vão
perdurar e aquelas que são esquecidas para sempre?
“Um dos primeiros e mais emocionantes livros que li foi A
Vida Sexual, de Egas Moniz, que descobri, aos 9 ou 10 anos, numa gaveta do meu
pai. Aos sábados, lia, no Cavaleiro Andante histórias inesquecíveis, como o Tartarin
de Tarascon ou o Beau Geste. No resto da semana, os livros que apanhava em casa dos
amigos dos meus pais e na Biblioteca Itinerante da Gulbenkian: romances ao
acaso (Tom Sawyer, Huck Finn, Os Maias, O Homem Invisível, policiais…), livros
de poemas ao acaso (Pessoa, Augusto Gil, Alexandre O ‘Neil, Thomas Kim, Mário
Cesariny…) e também Alice no País das Maravilhas, A Viagem Maravilhosa de Nils
Holgersson através da Suécia ou entradas avulsas da Enciclopédia Verbo. Em boa
parte, eu sou feito de todos esses livros e de muitos mais que vieram depois” [Manuel
António Pina numa entrevista a JA Gomes e publicada na revista Malasartes nº 2
de 2000]
“Há cada vez mais escritores, grandes escritores, a produzir
obras para jovens leitores. Classificar os escritores, como quem ordena
insectos, em diferentes géneros, parece-me uma tarefa ainda mais vã e mais
árdua do que classificar insectos. As fronteiras são da competencia das
polícias. Os grandes escritores costumam ignorá-las. (…) também é verdade que nem
todos os clássicos de literature infantil são boa literatura. É preciso
reformar o Lobo Mau. Não proponho que se escrevam versões politicamente
corretas dos velhos contos infantis (…) parece-me natural que as crianças
prefiram histórias do seu próprio tempo. Aprendi com o meu filho que se pode
chegar à grande literature por muitas portas. Mas a melhor, sem dúvida, é através
dos primeiros livros” [Agustina numa entrevista a J E Agualusa publicada na
revista Pública em junho de 2002]
Como afirma Nicole Robine: “É ignorar a
amplitude do campo das suas leituras (dos jovens) e recusar o estatuto de
leitura a todos os suportes que não estejam no âmbito da literatura ‘legítima’.
Na realidade os jovens lêem, lêem até muito mais do que os adultos. Mas as leituras
deles não são reconhecidas como tal porque o livro não ocupa, necessariamente,
o 1º lugar. Outros suportes (imprensa, ecrãs...outras formas de escrita – BD,
programas informáticos) contam. Enfim, é tão falso falar de leitura no singular
como considerar a juventude uma entidade... Há literaturas para jovens, há
leituras sempre em evolução, há crianças, e tudo e todos vivem fases
sucessivas.”
Há adolescentes que lêem para além do plano
institucional. São as chamadas ‘leituras selvagens’ como lhes chama Bernadette
Poulou. “Trata-se de 2 circuitos paralelos e sem qualquer comunicação e que
coexistem em perfeita ignorância um dos outro: um existe em função dos
professores ou dos pais, o outro é autónomo. Embora não circulem debaixo de
mão, o prazer que reside na sua circulação tem contudo este registo e suscita a
sua ‘magia’...
A liberdade de ler, a liberdade de escolher o que ler é
fundamental ser respeitada. O jovem é um ser em busca da sua autonomia, está em
processo de crescimento e as leituras oferecem-lhe essa fantástica oportunidade
de se descobrir e construir a si próprio.
E a
terminar...
“ um livro é feito de papel e tinta. Ah!
Claro e também de cola... Mas isso não é tudo. É feito de muitas outras coisas.
Um livro pode ser algo completamente distinto. Um rio que te leva, uma nuvem em
movimento na qual podes viajar, uma janela para outros mundos. Num livro
podes-te perder, podes olhar-te como num espelho, podes reconhecer-te. Há
livros que esquecemos de imediato e livros que levaremos connosco por todo o
lado. Cada livro é um começo, diferente para cada leitor. A mim agrada-me mas a ti não te agrada. Para
mim é perfeito, para ti completamente inútil. E isto está bem assim. Porque os
leitores são diferentes. Cada livro procura o seu leitor e cada leitor procura
o seu livro. Um leitor que se aborrece, um leitor indeciso ou dececionado, é um
leitor que ainda não encontrou o livro que lhe convém. Mas esse livro está aí
algures. À espera do seu leitor. E quando o livro e o leitor se encontram, é
fantástico. Às vezes os livros precisam de algumas pessoas para chegarem às
mãos dos seus verdadeiros leitores, pessoas como o pai, a mãe, os avós, os
bibliotecários, os amigos... É preciso ajudar os livros porque eles não têm pés
para sair em passeio. Mas, em contrapartida, têm asas, e emprestam-tas enquanto
os lês, durante o tempo que quiseres. Há muito boas razões para ler: porque é
fascinante, porque ‘te remueve’, porque te levam longe, porque... e outra, e
outra pelo menos 101 razões...” Beatrice Masini
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